C.S. Lewis
Clive Staples
Lewis (1898-1963)
nasceu em Belfast, na atual Irlanda do Norte, mas residiu grande parte de sua
vida na Inglaterra. Durante muitos anos, C. S. Lewis foi professor nas duas
universidades mais prestigiosas da Inglaterra: Oxford e Cambridge, onde
lecionou Literatura Medieval. Como cristão se tornou um dos autores mais conhecido
no mundo tendo seus livros traduzidos em diversos idiomas. Dentre suas obras
mais populares está “As Crônicas de Nárnia”.
O Grande Abismo, é uma fantasia sobre um grupo de pessoas que fazem uma
viagem de ônibus. O livro começa com o narrador aparecendo de repente e
inexplicavelmente, em uma triste e medonha cidade (A “Cidade cinzenta”, uma representação
do Inferno ou um lugar que se tornará nele em breve). Ele fica esperando um
ônibus que o levaria com outras pessoas,
para algum outro lugar. Nesse livro C.S. Lewis faz uma profunda reflexão sobre o bem e o
mal. “Se insistimos em conservar o Inferno (ou
mesmo a Terra) não veremos o Céu; se quisermos o Céu, não guardaremos a menor,
nem a mais familiar recordação do que seja o Inferno.” É um excelente
livro, quase uma mistura de “O Peregrino” com “O Inferno de Dante”.
1
"Uma Viagem Fantástica do Inferno para as Proximidades do Céu "*
Eu parecia achar-me de pé junto a uma fila de ônibus numa rua
comprida e pobre. Era no fim da tarde e caía uma chuva fina. Durante horas eu
tinha caminhado por ruas assim feias, sempre na chuva e sempre ao cair do dia.
O tempo parecia ter feito uma pausa naquele momento sombrio em que apenas
algumas lojas acendem as suas luzes e não está ainda suficientemente escuro
para que as janelas projetem na calçada sombras alegres.
E da mesma forma que a tarde não chegou a ser noite, meu
perambular jamais me levou a partes melhores da cidade. Por mais que andasse,
só encontrei pensões mesquinhas, pequenas tabacarias, tapumes com cartazes
rasgados e caindo aos pedaços, depósitos despidos de janelas, estações sem
trens e livrarias do tipo onde se vende As Obras de Aristóteles. Não vi ninguém
em lugar algum. A não ser pelo pequeno ajuntamento no ponto de ônibus, a cidade
inteira parecia deserta. Penso que foi por isso que decidi entrar naquela fila.
Tive sorte na mesma hora, pois no momento em que tomei o meu
lugar, uma mulherzinha irritada à minha frente falou um rispidez ao seu
acompanhante:
- “Olhe; não vou de jeito nenhum. Não adianta dizer nada”, e
deixou a fila.
- “Por favor”, respondeu o homem, numa voz cheia de dignidade,
“não pense que me importo de ir. Só estive tentando agradar você, para manter a
paz. Meus próprios sentimentos naturalmente não importam. Entendo isso muito
bem.” Juntando a ação à palavra, ele também se foi.
“Que bom,” pensei eu, “são dois lugares a mais.” Eu estava agora
próximo de um homem baixinho, carrancudo, que me olhou com ar de extremo
desagrado e observou, em tom desnecessariamente alto, ao que se achava diante
dele:
- “Este tipo de coisa faz a gente pensar se vale mesmo a pena
ir.”
- “Que espécie de coisa?” resmungou o outro, um homenzarrão
musculoso.
- “Bem”, replicou o Baixinho, “este não é de modo algum o tipo
de sociedade a que estou acostumado.”
- “Ora, ora,” enrolou o Grandão, e acrescentou com um olhar para
mim: “Não aceite nenhum gracejo dele, homem. Você não está com medo dele,
está?” A seguir, vendo que eu não fazia qualquer movimento, ele se voltou
repentinamente para o Baixinho, falando: “não somos bons o bastante para você,
não é? Olhe só quem está falando!”
No momento seguinte ele deu um soco no rosto do Baixinho que o
fez esparramarse na sarjeta. “Deixe que fique, deixe que fique”, disse a
Grandão a ninguém em particular. “Sou um homem simples, e tenho meus direitos
como outro qualquer, está vendo?” Como o outro não mostrasse mais qualquer
disposição para voltar à fila, afastando-se a manquejar, eu adiantei-me,
cautelosamente, achegando-me ao Grandão e me felicitei por ter avançado mais um
passo.
Logo em seguida, dois jovens que se achavam na frente dele
também saíram, de braço dado. Ambos vestiam calças, eram esbeltos, riam muito e
falavam em falsete, de modo que não pude ter certeza do sexo de qualquer dos
dois, mas ficou claro de que pelo menos naquele momento ambos preferiam um ao
outro do que a oportunidade de um lugar no ônibus.
- “Não vamos poder entrar todos”, choramingou uma voz feminina,
uns quatro lugares à minha frente.
- “Troco de lugar com a senhora por cinco pratas”, disse alguém.
Ouviu-se o ruído de dinheiro e depois um grito de mulher, misturado com risadas
do resto das pessoas.
A mulher enganada pulou de onde estava para enfrentar o homem
que a lograra, mas os demais imediatamente ceifaram fileiras e a puseram para
fora. . . E assim, com uma coisa e outra a fila se reduzira a proporções
compatíveis muito antes de o ônibus chegar.
Era um veículo maravilhoso, todo iluminado com luzes douradas. O
próprio Motorista parecia cheio de luz e guiava com uma só mão. Com a outra ele
abanava o rosto, como se para afastar o vapor gorduroso da chuva. Um resmungo
se fez ouvir na fila quando ele apareceu.
- “Parece que estava se divertindo, não é?... Aposto como está
todo satisfeito consigo mesmo... Meu caro, por que será que ele não pode
comportar-se naturalmente? Acha que é bom demais para olhar para nós... Quem
pensa que é?... Todos esses dourados e púrpura, que desperdício. Por que não
gastam um pouco de dinheiro na sua propriedade aqui? — Meu Deus! Gostaria de
dar-lhe um soco na orelha.”
Eu, da minha parte, não podia ver nada no semblante do Motorista
para justificar tudo isso, a não ser que fosse pelo seu ar de autoridade e
aparente atenção no seu trabalho.
Meus companheiros de viagem lutaram como galinhas para subir no
ônibus, embora houvesse lugar bastante para todos. Fui o último a entrar. O
ônibus tinha apenas metade dos lugares ocupados e escolhi um na parte de trás,
bem afastado dos outros. Mas um jovem de cabelos desgrenhados na mesma hora
sentou-se ao meu lado. Assim que o fez, nós partimos.
- “Pensei que não se incomodaria se eu ficasse aqui”, disse ele,
“pois notei que sente o mesmo que eu sobre esse pessoal. Por que eles insistem
em vir não posso imaginar. Não vão gostar de nada quando chegarmos lá, e
estariam na verdade muito melhor em casa. Mas para nós dois é diferente.”
- “Eles gostam deste lugar?” perguntei.
- “Tanto quanto gostariam de qualquer outro” respondeu. “Existem
cinemas, lojas, anúncios e toda sorte de coisas que quiserem. A falta absoluta
de vida intelectual não os preocupa. Descobri no momento em que cheguei que
algo estava errado. Eu devia ter tomado o primeiro ônibus, mas perdi tempo
tentando despertar as pessoas daqui. Encontrei alguns amigos que já conhecia e
tentei formar um pequeno círculo, mas todos parecem ter descido ao nível do
ambiente que os rodeia. Mesmo antes de chegar já tinha algumas dúvidas sobre um
homem como Ciro Braga. Sempre achei que ele estava trabalhando fora de seu
ramo. Mas, pelo menos era inteligente. A gente podia ouvir algumas críticas
valiosas feitas por ele, embora fosse um fracasso quanto à criatividade. Agora,
entretanto, parece que nada lhe restou a não ser a sua presunção. Da última vez
que tentei ler para ele alguns de meus trabalhos... mas, espere um pouco, quero
que você mesmo veja.”
Ao compreender, com um arrepio, que ele estava tirando do bolso
um maço volumoso de papel datilografado, eu murmurei algo sobre não ter trazido
os óculos e exclamei:
- “Olhe! Saímos do chão!”
Era verdade. A centenas de pés abaixo, já quase ocultos pela
chuva e neblina, os telhados molhados da cidade podiam ser vistos,
espalhando-se sem interrupção até onde a vista podia abranger.
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*Trecho do livro "O Grande Abismo " de C.S. Lewis.
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