Capítulo 5*
Cristão em casa de Intérprete. Coisas que lá viu; um
bom ministro do Evangelho; regenerado pela fé dum coração por natureza
corrompido; a melhor escolha; a vida espiritual sustentada pela graça; a
perseverança; a apostasia; o juízo final.
Pôs-se Cristão a caminho com muito ânimo, e dentro de pouco tempo,
chegava à casa de Intérprete. Bateu à porta repetidas vezes, até que lhe
perguntaram quem era.
Cristão – Sou um viajante enviado por um conhecido do dono desta
casa, a fim de saber coisas proveitosas. Desejava, portanto, falar ao dono da
casa.
Este apareceu imediatamente, e dirigindo-se ao viajante,
perguntou-lhe:
Intérprete – Que pretendes?
Cristão – Senhor, eu venho da cidade da Destruição e dirijo-me
para o monte Sião. O homem que está à porta da entrada do caminho disse-me que
eu devia passar por esta casa, e que me ias mostrar muitas coisas excelentes e
proveitosas para a minha viagem.
Intérprete – Podes entrar. Serão cumpridos os teus desejos.
Em seguida ordenou a um de seus criados que acendesse uma luz, e
tomando pela mão o viajante, introduziu-o numa sala. Abriu depois uma porta, e
Cristão viu, pregado na parede, o retrato duma personagem grave e majestosa dos
livros na mão e a lei da verdade escrita nos seus lábios; voltava as costas ao
mundo, e estava na atitude de instar com os homens; uma coroa de ouro estava
pendente sobre a sua cabeça. Dirigindo-se a Cristão, que não percebia o que
significava aquele quadro, disse-lhe:
Intérprete – Este é um entre mil. Este pode tomar para si aquelas
palavras do Apóstolo: “Porque, ainda que tenhais dez mil aios em Cristo, não
tereis, todavia, muitos pais; pois eu sou o que vos gerou em Cristo pelo
Evangelho. Filhinhos meus, por quem eu de novo sinto as dores de parto.” (I
Coríntios 4:15; Gálatas 4:19). E o apresentar-se com os olhos levantados para o
céu, o melhor dos livros na mão, e lei da verdade escrita em seus lábios, é para
te mostrar que se ocupa em conhecer e explicar coisas obscuras para os
pecadores; e por isso está de pé, na atitude de quem trata de convencê-los. Tem
o mundo atrás das costas, e uma coroa de ouro pendente sobre sua cabeça para te
significar que, desprezando e fazendo pouco caso das coisas deste mundo, por
causa do serviço do seu Senhor, terá como recompensa, no século futuro, uma
coroa de glória. Principiei por te mostrar este quadro, porque a personagem
aqui representada é a única autorizada pelo Senhor do lugar para onde te
diriges, para te guiar em todos os passos difíceis que hás de encontrar no teu
caminho. Não te esqueças do que te ensinei nem do que viste, porque talvez
encontres na tua viagem alguém que, inculcando-se guia, te queira encaminhar
para a morte.
Depois pegou-lhe na mão e conduziu-o a uma sala cheia de poeira,
porque nunca fora varrida, e, tendo ordenado a um dos criados que a varresse,
levantou-se tal nuvem de poeira que Cristão ia ficando sufocado. Disse
Intérprete então a uma jovem, que os acompanhava, que borrifasse a casa com
água, e assim pôde varrer-se a casa sem dificuldade.
Cristão – Que significa isto?
Intérprete – A sala representa um coração que nunca foi
santificado pela doce graça do Evangelho; a poeira é o pecado original e a
corrupção interior, que contamina todos os homens; o que principiou a varrer é
a lei, e a jovem que trouxe a água e borrifou a sala é o Evangelho. Certamente
notaste, quando o primeiro começou a varrer, que se levantou tanto pó que foi
absolutamente impossível continuar, e estiveste quase a ser asfixiado: isto significa
que a lei, em lugar de limpar os corações do pecado, fá-lo reviver cada vez
mais (Romanos 7:9), dá-lhe força (I Coríntios 15:16), e fá-lo medrar na alma
(Romanos 5:20), ao mesmo tempo que o denuncia e o prescreve, sem dar a força
necessária para o vencer. O fato de ter sido possível varrê-lo e limpá-lo
depois de o ter a jovem regado, significa que, quando o Evangelho entra no
coração, vence e subjuga o pecado com a sua doce e preciosa influência. Limpa a
alma que nele crê e torna-a digna de ser habitada pelo Rei da Glória (João
15:3; Romanos 3:25-26; Efésios 5:26; Atos 15:29).
Vi mais em meu sonho, que o Intérprete tomou, em seguida, a mão do
Peregrino e conduziu-o a um pequeno quarto onde estavam dois meninos sentados;
o mais velho chamava-se Paixão e o mais novo Paciência; o primeiro estava muito
inquieto, e o segundo muito sossegado. Aquele, disse Intérprete, não se resigna
a esperar, até ao princípio do ano futuro, pela posse das coisas que mais
estima, como lhe aconselha o seu preceptor; queria possuí-las já, e como não
pode consegui-lo, está inquieto. Paciência, porém, resigna-se e espera.
Naquele momento vi entrar um homem com um saco de dinheiro, que
colocou aos pés de Paixão. Este recebeu-o com grande interesse e alegria,
dirigindo a Paciência um sorriso de escárnio, mas a sua alegria foi pouco
duradoura, porque o dinheiro depressa se gastou; nada mais restou a Paixão do
que uns miseráveis andrajos.
Intérprete – Paixão é a imagem dos homens deste mundo, e Paciência
a dos homens do século futuro. Paixão quer possuir e gozar tudo agora, neste
mesmo ano, isto é, neste mundo, à semelhança dos homens que querem gozar tudo
quanto se lhes afigura melhor, e nada desejam para o mundo futuro, ou para a
outra vida. O conhecido provérbio – mais vale um pássaro na mão que dois
voando, é para eles de muito mais valor do que todos os testemunhos divinos
acerca da felicidade futura. E que lhes acontece? Assim como a Paixão só
ficaram uns andrajos depois de gasto o dinheiro, assim a eles sucederá.
Cristão – Compreendo perfeitamente que Paciência é muito mais
sensato: 1º. Porque aspira as coisas mais excelentes, e 2º porque há de
gozá-las e ter nelas a sua glória, quando aos outros só restarem andrajos.
Intérprete – E, ao que disseste, deves acrescentar que a glória do
século futuro será eterna, enquanto que os bens deste século se dissipam como
fumo. Quem tem incontestável direito para se rir de Paixão é Paciência: porque
terá finalmente a sua felicidade, ao passo que Paixão a tem agora. O primeiro
há de ceder necessariamente o campo ao último, enquanto que este a ninguém terá
que ceder, porque ninguém se lhe segue. O que recebe o seu quinhão do presente
gasta-o no tempo, até que nada lhe reste, e o que o recebe no final conserva-lo-á
para sempre, porque não há haverá mais tempo em que possa gastá-lo. Assim como
dito ao rico avarento: “Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida,
e que Lázaro não teve senão males; mas por isso está ele agora consolado e tu
em tormentos.” (Lucas 16:25).
Cristão - Visto isso, percebo que é melhor não cobiçarmos as
coisas presentes, e ter esperança nas futuras.
Intérprete - Assim é: “As coisas que se vêem são temporais, mas as
que se não vêem são eternas” (II Coríntios 4:18). Acontece, porém, que, havendo
grande afinidade entre as coisas presentes e os nossos apetites carnais,
prontamente se tornam amigos; o que não sucede com ais coisas futuras, que tão
longe estão do sentido da carne (Romanos 7:15-25).
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*Continuação da leitura do livro "O Peregrino" para a turma da "Sala de Estudos"
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