Capítulo 3*
Cristão abandona o caminho enganado por
Sábio-Segundo-o-Mundo; mas Evangelista sai-lhe ao encontro, e indica-lhe de
novo o caminho a seguir
Cristão, apesar de se achar só, empreendeu a sua marcha
resolutamente, e viu caminhar para ele, no meio da planície, um sujeito com
quem pouco depois se encontrou no ponto em que se cruzavam as diferentes
direções em que marchavam. Este novo interlocutor chamava-se Sábio-Segundo-o
Mundo, e habitava numa cidade conhecida por Prudência-Carnal, situada a pouca
distância da cidade da Destruição. Tinha ele ouvido falar de Cristão, pois a
sua partida da terra natal tinha sido muito falada, e vendo-o agora caminhar tão
fatigado devido ao fardo que conduzia, e ouvindo-lhe os gemidos e os suspiros,
dirigiuse- lhe nos seguintes termos:
Sábio – Bem-vindo sejas, amigo! Aonde vais com este fardo tão
pesado?
Cristão – Dizes bem. É tão pesado que nunca pessoa alguma carregou
um peso assim. Dirijo-me para a porta estreita, que vês além, porque, segundo
me disseram, lá é onde me comunicarão o modo de ver-me livre deste fardo.
Sábio – Tens mulher e filhos?
Cristão – Tenho, sim; mas este fardo preocupa-me e aflige-me tanto
que já não sinto por eles o prazer que possuía outrora, e apenas tenho
consciência de os possuir. (I Coríntios 7:29).
Sábio – Vamos; escuta-me, que posso dar-te muitos bons conselhos.
Cristão – Recebê-los-ei com o maior gosto, pois preciso muito de
bons conselhos.
Sábio – Em primeiro lugar, sou de parecer que te desfaças, quanto
antes, desse peso. Enquanto assim não fizeres, a tua alma não estará tranqüila,
nem poderás gozar, como deves, as bênçãos que o Senhor derramou sobre ti.
Cristão – Disso mesmo é que eu vou em busca, visto ser-me
impossível fazê-lo por mim mesmo, e não haver no país quem seja capaz de o
conseguir. Foi só com esse fim que eu empreendi esta viagem.
Sábio – Quem te aconselhou a empreendê-la?
Cristão – Um cavalheiro que me parece muito digno de respeito e de
consideração. Lembro-me de que se chamava Evangelista.
Sábio – Maldito seja quem tais conselhos dá! Este caminho é
exatamente o mais difícil e perigoso que há no mundo. Não começaste já a
experimentá-lo? Bem te vejo cheio de lodo do Pântano da Desconfiança. E olha
que esse não é senão o primeiro elo da cadeia de males que por esse caminho te
esperam. Sou mais velho do que tu, e tenho ouvido muitas pessoas darem
testemunho próprio de que por aí afora só há fadigas, penas, fome, perigos,
nudez, leões, dragões, trevas, em suma a morte com todos os seus horrores.
Dize-me francamente, para que se há de perder um homem por dar ouvidos a
estranhos?
Cristão – Da melhor boa vontade sofreria todos os males que acabas
de enumerar, em troca de me ver livre deste fardo que é para mim mais pesado e
mais terrível do que todos eles.
Sábio – E como veio esse fardo para cima de ti?
Cristão – Lendo eu este livro que tenho na mão.
Sábio – Logo me quis parecer. És um desses imbecis que se metem em
coisas elevadas demais para eles, e que por fim encontram tantas dificuldades e
perdem o juízo e são arrastados a desesperadas aventuras para alcançarem um
coisa que nem mesmo sabem o que é.
Cristão – Quanto a mim, sei perfeitamente o que quero: ver-me
livre deste pesado fardo.
Sábio – Compreendo isto. Mas para que hás de ir por um caminho tão
perigoso, se eu posso indicar-te outro em que não há nenhuma dessas
dificuldades? Tem um pouco de paciência, e ouve-me: o meu remédio está à mão, e
em vez de perigos, acharás segurança, amigos, e satisfação.
Cristão – Então fala; peço-te com muita insistência; descobre-me
esse segredo.
Sábio – Olha: nessa aldeia próxima, que se chama Moralidade, vive
um homem de muito juízo e grande reputação, cujo nome é Legalidade, o qual é
muito hábil em tratar pessoas como tu, o que tem sido provado com numerosos
exemplos; além disso, também sabe curar os indivíduos que padecem do cérebro. A
casa dele fica daqui a um quarto de légua, quando muito, e, se ele não estiver
em casa, seu filho, Urbanidade, que é um mancebo de grande talento, poderá
servir-te tão bem como seu pai. Não deixes de lá ir. E se não estás disposto, como
não deves estar, a voltar à tua cidade, manda buscar tua mulher e teus filhos,
porque na aldeia de que te falo há muitas casas devolutas, e podes arranjar uma
por preço muito módico. Outra coisa boa aí encontrarás: vizinhos honrados, de
fino trato e bons costumes. A vida ali é muito barata e cômoda.
Ao ouvir estas palavras, Cristão ficou indeciso durante alguns
momentos, mas logo lhe acudiu este pensamento: - Se é verdade o que ele diz, a
prudência manda-me seguir as suas palavras.
Cristão – Por onde é que se vai à casa desse honrado homem?
Sábio – Depois de passares aquela alta montanha, a primeira casa
que encontrares é a dele.
Cristão mudou imediatamente de resolução, para dirigir-se à casa
do Sr. Legalidade, em busca do remédio apetecido. Quando chegou às abas da
montanha, pareceu-lhe esta tão elevada, e tanto a prumo no sítio por onde tinha
de passar, que teve medo de prosseguir, temendo que ela se despenhasse sobre
sua cabeça. Parou sem saber que partido tomar. Sentiu, então, mais do que
nunca, o peso do seu fardo, vendo sair da montanha relâmpagos e chamas que
ameaçavam devorá-lo (Êxodo 19:16-18). Assaltaram-no grandes temores e estremeceu
de terror (Hebreus 12:21). Ai de mim! Exclamava ele, para que havia eu de fazer
caso dos conselhos de Sábio-Segundo-o-Mundo? E, quando estava possuído destes temores
e remorsos, viu Evangelista que se aproximava. Que vergonha! Que estremecimentos
senti ao encontrar o olhar severo de Evangelista!
Evangelista – Que fazes por aqui?
Cristão não achou palavras para responder. A vergonha
paralisara-lhe a língua.
Evangelista – Não foi a ti que eu encontrei a chorar fora dos
muros da cidade da Destruição?
Cristão – Foi a mim, sim, senhor.
Evangelista – Então, como te perdeste tão depressa do caminho que
te ensinei?
Cristão – Assim que passei o Pântano da Desconfiança, encontrei um
homem que me persuadiu de que na aldeia vizinha encontraria um sujeito que me
livraria do meu fardo. Pareceu-me excelente pessoa, e tantas coisas me disse
que eu cedi e vim até este lugar; mas quando me aproximei do sopé da montanha,
e a vi tão alta e tão a prumo sobre a estrada, parei subitamente, temendo que
ela desabasse sobre mim.Este sujeito perguntou-me para onde eu ia, ao que lhe
respondi com a maior sinceridade. Quis também saber se eu tinha família, e eu o
afirmei, acrescentando, porém, que este fardo pesado me impedia de encontrar nela
a satisfação que outrora me proporcionava. Pois – disse-me ele – é preciso que,
quanto antes, te livres desse tormento, e, em vez de te dirigires a essa porta
estreita onde esperas que te indiquem a maneira de conseguires esse árduo
desejo, seguirás por uma estrada mais direita e melhor, onde não encontrarás
tropeços, a cada passo, com menos dificuldades que no outro caminho se
encontram, como o sabes por experiência. Se marchares nesta direção, chegarás
em pouco tempo à casa de um homem que é muito entendido em tirar pesados
fardos. Acreditei. E, de pronto, abandonei a estrada que tu me havias indicado,
e segui por esta, mas quando cheguei a este lugar em que nos achamos, tive
medo, estou indeciso e sem saber o que hei de fazer.
Evangelista – Espera um momento e ouve as palavras do Senhor
(Cristão escutava-o, de pé, e tremendo): “Olhai, não desprezeis ao que fala;
porque se não escaparam aqueles que desprezavam ao que lhes falava sobre a
Terra, muito menos nós outros, se desprezarmos ao que nos fala do céu.”
(Hebreus 12:25). “O justo viverá da fé; mas se ele se apartar, não agradará à
minha alma.” (Hebreus 10:38). E aplicando estas palavras a Cristão, disse: Esse
homem que se ia precipitando na ruína eras tu. Começaste a pôr à parte o
conselho do Altíssimo, e a retirar o teu pé do caminho da paz, a ponto de te
expores a perder-te.
Cristão caiu-lhe aos pés, quase desfalecido, exclamando: Ai de
mim, que estou morto!
A estas palavras Evangelista estendeu-lhe a mão, dizendo-lhe:
“Todo o pecado e blasfêmias serão perdoados aos homens.” (Mateus 12:31). “Não
sejas incrédulo, mas crente.” (João 20:27).
Algum tanto mais animado, Cristão levantou-se, mas sempre
envergonhado e trêmulo. Evangelista prosseguiu: Presta atenção ao que vou
dizer-te: vais saber quem foi que te enganou, e para quem te ias dirigindo. O
primeiro era Sábio-Segundo-o-Mundo, nome que muito apropriadamente usa: antes
de tudo, porque só gosta das doutrinas deste mundo (I João 4:5), pelo que vai
sempre à igreja da cidade da Moralidade, e gosta dessa doutrina, porque ela o
livra da cruz (Gálatas 6:2); em segundo lugar, porque sendo carnal o seu temperamento,
procura perverter os meus retos desígnios. Por isso há três coisas nos conselhos
que esse homem te deu, as quais devem ser execrandas para ti:
1ª – Haver-te desviado do caminho;
2ª – Haver-te tentado fazer com que aborreças a cruz;
3ª – Haver-te encaminhado por essa vereda que conduz à morte.
Deves, portanto:
1º – Repudiar a quem te desviou do caminho, erro em que caíste, e
que equivale a desprezar o conselho de Deus para seguir o do homem. O Senhor
disse: “Porfiai em entrar pela porta estreita.” (Lucas 13:24). Para essa porta
é que te dirigias. “Porque estreita é porta que conduz à vida, e poucos são os
que acertam com ela.” (Mateus 7:13-14). Esse malvado desviou-te daquela porta,
e do caminho que a ela vai ter, para lançar-te na perdição. Odeia, pois, o seu
procedimento, odianto-te também a ti mesmo por lhe haveres prestado ouvidos.
2º – Detestar aquele que diligenciou que a Cruz te repugnasse,
porque deves preferi-la a todos os tesouros do Egito (Hebreus 11:25-26). Além
do que, o Rei da Glória disse-te que “aquele que salvar a sua vida perdê-la-á”
e “se alguém vem após mim e não aborrece seu pai e sua mãe, filhos, irmãos e
mulher e irmãs, e a sua própria vida, não pode ser meu discípulo” (Marcos 8:35;
Lucas 14:26-27; João 12:25; Mateus 10:37-39). Por isso te digo que uma doutrina
que busca persuadir-te de que é morte aquilo que a Verdade disse que é indispensável
para se obter a vida eterna, é uma doutrina abominável e que deves detestar.
3º – Aborrecer aquele que te encaminhou para a senda que conduz ao
mistério da morte. Agora podes calcular se a pessoa a quem te dirigias, seria
capaz de te livrar do teu fardo.
Essa pessoa chama-se Legalidade, e é um dos filhos da escrava, que
ainda está na escravidão, assim como seus filhos (Gálatas 4:21-27),
misteriosamente representada pelo monte Sinai, que tu receaste iria cair sobre
ti. Ora, se ele e seus filhos estão na escravidão, como poderias tu esperar que
te dessem a liberdade? Oh! Nunca! Não seria capaz Legalidade de te libertar, de
livrar-te do fardo. Nunca livrou pessoa alguma, nem poderá jamais fazê-lo. Não
podes ser justificado pelas obras da lei, porque por elas nenhum vivente pode
ser aliviado da sua carga. Fica, pois, sabendo que Sábio-Segundo-o-Mundo é um embusteiro
e Legalidade, apesar do seu sorriso afetado, não passa de um hipócrita, sem préstimo
para coisa alguma. Crê que tudo quanto ouviste a esses insensatos não foi mais
do que uma tentativa para te afastar da salvação, desviando-te do caminho que
te havia indicado.
Assim falou Evangelista, e, erguendo a voz, pediu aos céus que
confirmassem quanto havia dito. No mesmo instante saíram palavras de fogo da
montanha de que se aproximara Cristão, cujos cabelos se eriçaram.As palavras
que ele ouviu eram estas: “Porque todos quantos são das obras da lei estão
debaixo da maldição; porque está escrito: Maldito todo o que não permanecer em
todas as coisas que estão escritas no livro da lei, para fazê-las.” (Gálatas
3:10).
Ao ver e ouvir isto, Cristão não esperava senão a morte. Começou a
lamentar-se em altos gritos, e a maldizer a hora em que encontrara
Sábio-Segundo-o-Mundo, chamando-se mesmo de néscio por ter dado ouvido aos seus
conselhos destruidores e perversos.
Era imensa a sua vergonha ao lembrar-se que os conselhos daquele
insensato, sendo nascidos da carne, tinham podido prevalecer sobre o seu modo
de pensar, a ponto de se ter resolvido a abandonar o caminho do Bem. Voltando
então para Evangelista, falou-lhe nos seguintes termos:
Cristão – Senhor, haverá alguma esperança para mim? Não poderei
voltar para trás e tomar de novo o caminho da porta estreita? Não serei
abandonado e expulso dali com infâmia? Pesa-me, sobretudo, haver escutado as
palavras desse homem. Poderei, todavia, obter perdão para o meu pecado?
Evangelista – Na verdade que o teu pecado é bem grande. Levou-te a
praticar duas ações más: apartaste-te do caminho do bem, e entraste nas veredas
proibidas. Não obstante, o homem que está à porta, receber-te-á, porque há nele
boa vontade para com os homens. Uma só coisa advirto: toma cuidado em não te
extraviares outra vez, para que não suceda pereceres no meio do caminho (Salmo
2:12).
Cristão dispôs-se a partir e, tendo beijado Evangelista,
despediu-se dele com um sorriso de felicidade, dizendo: Deus seja contigo.
E começou a andar apressadamente, não falando com pessoa alguma no
caminho, nem ainda mesmo respondendo às perguntas que lhe dirigiam.
Parecia que pisava terreno inimigo, e só se considerou a salvo
quando tornou a entrar no caminho que havia abandonado por conselho do
enfatuado Sábio-Segundo-o-Mundo.
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*Continuação da leitura do livro "O Peregrino" para a turma da "Sala de Estudos"
Continuação... Capítulo 4
Continuação... Capítulo 4
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