Capítulo 2*
Vendo-se abandonado por Obstinado e Flexível,
prossegue Cristão a sua viagem. O Pântano da Desconfiança.
Cristão deitou a correr na direção que lhe havia sido indicada;
mas a mulher e os filhos, ao verem-no fugir, seguiram atrás dele, suplicando
que voltasse para casa. Cristão não lhes deu ouvidos, e, continuando a carreira
com mais velocidade, gritava em altas vozes: “Vida, vida, vida eterna!” (Lucas
14:26). E, sem olhar para trás (Gên. 19:17; II Coríntios 4:18), continuou até
ao meio da planície. Acudiram também os seus vizinhos (Jeremias 20:10). Uns
zombavam dele, outros ameaçavam-no, e outros ainda gritavam-lhe que voltasse.
Entre estes últimos havia dois que estavam resolvidos a ir agarrá-lo e trazê-lo
à força para casa. Chamavam-se Obstinado e Flexível. Apesar da considerável
distância a que se achava o fugitivo, os dois vizinhos, redobrando esforços,
conseguiram alcançá-lo.
– Que pretendeis de mim? Perguntou-lhes Cristão.
– Queremos que voltes conosco.
– É impossível, respondeu Cristão. A cidade em que habitais, e
onde eu também nasci, é a cidade da Destruição. Se lá morrerdes, sereis
enterrados num lugar mais fundo do que o sepulcro, onde arde fogo e enxofre.
Eia, pois, vizinhos, tomai bom ânimo e vinde comigo.
Obstinado – Que dizes? Havemos de deixar os nossos amigos e as
nossas comodidades?
Cristão – Certamente, amigo: porque tudo isso nada é, em
comparação com a mais diminuta parte do que eu procuro gozar (Romanos 8:18). Se
me acompanhardes, gozareis de tudo isto juntamente comigo, porque no lugar para
onde me dirijo há muito, e para todos (Lucas 15:17). Vinde, e tereis a prova.
Obstinado – Mas que coisas são essas que procuras, em troca das
quais abandonas tudo o que há no mundo?
Cristão – Procuro uma herança incorruptível, que não pode
contaminar-se nem murchar (I Pedro 1:4), reservada com segurança no céu
(Hebreus 11:16), para ser dada, no devido tempo, aos que a buscam
diligentemente. Assim o declara o meu livro; lede, se quereis, e
convencer-vos da verdade.
Obstinado – Ora, deixa-te lá dessa questão de livro; queres voltar
para a tua casa, ou não?
Cristão – Isso nunca; porque já pus a mão no arado. (Luc 9:62).
Obstinado – Nesse caso, vizinho Flexível, deixemo-lo partir, e
vamos nós para casa. Há muita gente a quem falta o juízo, em cuja cabeça,
encasquetando-se algo, é bastante para que se julgue mais atilado do que os sete
sábios da Grécia reunidos.
Flexível – Nada de injúrias. Se o que ele diz é verdade, não pode
haver dúvida de que as coisas que busca alcançar são incomparavelmente
superiores às que possuímos. Diz-me o coração que ele está muitíssimo certo no
que afirma, e eu me sinto inclinado a acompanhá-lo.
Obstinado – Então, enlouqueceste também? Ora, toma o meu conselho,
e vem para casa comigo. Sabes lá onde esse doido seria capaz de te levar? Anda
daí.
Cristão – Deixa-o falar, amigo Flexível; acompanha-me e terás não
só a prova do que já te disse, mas ainda muito mais. Se duvidas da minha
palavra, lê este livro; daquele que é seu Autor (Hebreus 9:17-21).
Flexível – Amigo Obstinado, a minha resolução está tomada; vou
acompanhar este homem e unir a minha sorte à sua. Mas sabes tu (dirigindo-se a
Cristão) qual é o caminho que conduz ao lugar que buscamos?
Cristão – Quem me indicou o caminho foi um homem chamado
Evangelista. Segundo o que me disse ele, havemos de encontrar uma porta
estreita, lá, mais adiante, e aí nos dirão o caminho que havemos de seguir.
Flexível – Então, marchemos!
E ambos se puseram a caminho. Obstinado voltou sozinho para a
cidade, censurando os erros e as fantasias dos dois vizinhos. Estes continuaram
a caminhar pela planície afora e conversavam nestes termos:
Cristão – Amigo Flexível, ainda não tive ocasião de me informar da
tua saúde. Não imaginas quanta satisfação me causa a tua companhia. Se o pobre
Obstinado sentisse, como eu, o poder e os terrores do invisível, e a grandeza
das coisas que nos esperam, por certo não se teria apartado de nós tão
levianamente.
Flexível – Agora que estamos sós, explica-me o que são essas
coisas de que me falas, como havemos de as gozar e para onde é que nos
dirigimos.
Cristão – Tenho mais facilidade em compreendê-las com o
entendimento do que em expressá-las por palavras. Todavia, se tens grande
desejo de saber o que penso a respeito delas, ler-te-ei o meu livro.
Flexível – E tens certeza de que as palavras do livro são
verdadeiras?
Cristão – Tenho sim; porque o seu Autor é Aquele que não pode
mentir (Tito 1:2).
Flexível – Então, lê-mo.
Cristão – Entraremos na posse dum reino que não terá fim, e
seremos dotados de vida eterna, para podermos possuí-lo para sempre (Isaías
65:17; João 10:27-29). Ser-nos-ão dadas coroas de glória, e vestidos tão
resplandecentes como o sol no firmamento (II Tim.4:8; Apocalipse 22:5; Mateus
13:43). Não haverá ali pranto nem dor (Isaías 25:8; Apocalipse 7:16-17, e
21:4), porque o Senhor daquele reino limpará todas as nossas lágrimas.
Flexível – Quadro belo e magnífico! E a quem teremos por
companheiros?
Cristão – Estaremos com os querubins e serafins (Isaías 6:2; I
Tessalonicenses 4:16-17; Apocalipse 5:11), criaturas cujo brilho nos
deslumbrará; também encontraremos milhares e milhares que para ali foram antes
de nós, todos inocentes, amáveis e santos, que vivem na presença de Deus para
sempre. Veremos os anciãos com suas coroas de ouro (Apocalipse 4:4), as santas
virgens entoando suaves cânticos ao som das suas harpas de ouro (Apocalipse
14:1-5), homens a quem o mundo esquartejou, outros que foram queimados em autos
de fé ou devorados pelas feras, ou lançados nas profundezas dos mares, por amor
do príncipe daquele reino; vivendo todos felizes, revestidos da imortalidade
(João 12:25; II Coríntios 5:2, 3, 5).
Flexível – A simples descrição arrebata-me de entusiasmo. E
havemos de gozar esses bens? Que faremos para conseguir partilhar deles?
Cristão – O Senhor do reino declara neste livro (Isaías 55:1-2;
João 4:37; e 7:37; Apocalipse 16:6; 22:17) quais são os requisitos; eles se
resumem nestas palavras: “Se verdadeiramente os desejamos, Ele no-los concederá
de graça”.
Flexível – Muito bem, amigo. O meu coração exulta de alegria; continuemos
o nosso caminho e apressemos o passo.
Cristão – Infelizmente não posso andar tão depressa como desejo,
porque este fardo que tenho às costas é pesadíssimo.
Conversavam ambos nestes termos, quando os vi chegar à beira dum
lodoso pântano, que havia no meio da planície, onde ambos caíram por não o
terem visto, entretidos como iam na conversa. Era o pântano da Desconfiança.
Coitados! Atolaram-se no lodo, e Cristão atolava-se cada vez mais por causa do
seu pesado fardo. – Onde é que nós estamos metidos? Exclamou Flexível.
– Ignoro, respondeu Cristão.
– Então, replicou Flexível, esta é a felicidade de que tens estado
a falar? Se assim começarmos a viagem, não posso agourar-lhe bom fim. Mas eu
prometo que, se me vejo livre desta, dispensarei de bom grado a parte que
poderia pertencer-me do tal decantado país. E fazendo um pequeno esforço,
conseguiu alcançar a margem do pântano que ficava para o lado de sua casa. Logo
que se viu fora do perigo, deitou a correr na direção de sua casa, e Cristão
não mais tornou a vê-lo.
Entretanto, debatia-se Cristão no meio do lodo, diligenciando por
chegar à margem oposta; mas o pesado fardo, que transportava, embaraçava-o
sobremaneira e ele teria irremediavelmente perecido, se não tivesse chegado
ali, muito a propósito, um sujeito chamado Auxílio, que lhe perguntou o que
fazia naquele lodaçal.
Cristão – Senhor, um homem chamado Evangelista ensinou-me esta
estrada para eu chegar à porta estreita, dizendo que lá me livrariam da ira
vindoura. E, quando vinha caminhando, aqui caí inesperadamente.
Auxílio – Bem. Mas por que não seguiste pelas alpendras, aquelas
pedras que ali estão colocadas para se atravessar o pântano com mais
facilidade?
Cristão – Foi tal o receio que de mim se apoderou que, sem reparar
em coisa alguma, segui pelo caminho mais curto e caí no lodaçal.
Auxílio – Vamos. Dá-me, pois, a tua mão.
Cristão viu os céus abertos. Apoderou-se da mão de Auxílio, saiu
daquele terrível lugar, e, uma vez em terreno firme, continuou o seu caminho,
conforme o seu libertador lhe havia indicado.
Acerquei-me, então, de Auxílio, e perguntei-lhe: Ora, sendo este
caminho direito entre a cidade da Destruição e essa porta, por que não mandam
arranjar este lugar com mais decência para comodidade dos pobres caminhantes?
– É impossível, respondeu ele; este é o lodaçal para onde afluem
todas as fezes e imundícies dos que se dirigem para a convicção do pecado, por
isso se chama o Pântano da Desconfiança. Quando o pecador desperta no
conhecimento das suas culpas e do seu estado de perdição, surgem em sua alma
dúvidas, temores, apreensões desconsoladoras que se ajuntam e se condensam
neste lugar. Eis a razão por que ele é tão esquecido e tão impossível de ser
melhorado. Por certo que não foi da vontade de el-rei que ele ficou em tão mau
estado (Isaías 35:3-4). Muitos operários têm, por ordem de Sua Majestade, e sob
a direção dos seus superintendentes, durante muitos séculos, envidado todos os
seus esforços para o melhorarem. É incalculável o número de carro e os milhões
de saudáveis lições que para aqui têm sido enviados de todas as partes e
domínios de Sua Majestade. Mas, apesar da opinião dos entendidos que asseveram
ser estes os melhores materiais para a obra do almejado saneamento moral, ainda
não foi possível realizá-lo, nem o será para o futuro. O Pântano existe e
continuará a existir! Fez-se quanto se podia fazer. Por ordem do Legislador,
foram colocadas no meio do pântano umas pedras fortes e sólidas, por onde se possa
passar mais facilmente; mas, quando o lodaçal se agita, o que sempre acontece
nas mudanças de tempo, exala miasmas que sufocam os viandantes, e estes, não
vendo as pedras, caem no atoleiro. O que lhes vale é que, quando conseguem
alcançar a porta, já encontram terreno bom e firme.
Depois vi que Flexível chegava à sua casa e que os seus vizinhos
acudiam, em tropel, para o verem. Uns chamavam-no sábio, porque abandonara a
tempo a empresa; censuravam-no outros por se haver deixado iludir por Cristão,
e alguns chamavam-no de covarde porque, uma vez no caminho, não deveria ter
retrocedido pelo fato apenas de lhes haverem levantado umas pequenas
dificuldades. Flexível sentiu-se abatido e envergonhado, mas pouco depois,
achava-se senhor de si, e, então, todos em coro escarneciam de Cristo, na sua ausência.
E assim sendo, creio que não tornarei a falar mais de Flexível.
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*Continuação da leitura do livro "O Peregrino" para a turma da "Sala de Estudos"
Continuação... Capítulo 3
Continuação... Capítulo 3
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