segunda-feira, 15 de abril de 2013

O Peregrino

Capítulo 2*

Vendo-se abandonado por Obstinado e Flexível, prossegue Cristão a sua viagem. O Pântano da Desconfiança.




Cristão deitou a correr na direção que lhe havia sido indicada; mas a mulher e os filhos, ao verem-no fugir, seguiram atrás dele, suplicando que voltasse para casa. Cristão não lhes deu ouvidos, e, continuando a carreira com mais velocidade, gritava em altas vozes: “Vida, vida, vida eterna!” (Lucas 14:26). E, sem olhar para trás (Gên. 19:17; II Coríntios 4:18), continuou até ao meio da planície. Acudiram também os seus vizinhos (Jeremias 20:10). Uns zombavam dele, outros ameaçavam-no, e outros ainda gritavam-lhe que voltasse. Entre estes últimos havia dois que estavam resolvidos a ir agarrá-lo e trazê-lo à força para casa. Chamavam-se Obstinado e Flexível. Apesar da considerável distância a que se achava o fugitivo, os dois vizinhos, redobrando esforços, conseguiram alcançá-lo.

– Que pretendeis de mim? Perguntou-lhes Cristão.

– Queremos que voltes conosco.

– É impossível, respondeu Cristão. A cidade em que habitais, e onde eu também nasci, é a cidade da Destruição. Se lá morrerdes, sereis enterrados num lugar mais fundo do que o sepulcro, onde arde fogo e enxofre. Eia, pois, vizinhos, tomai bom ânimo e vinde comigo.

Obstinado – Que dizes? Havemos de deixar os nossos amigos e as nossas comodidades?

Cristão – Certamente, amigo: porque tudo isso nada é, em comparação com a mais diminuta parte do que eu procuro gozar (Romanos 8:18). Se me acompanhardes, gozareis de tudo isto juntamente comigo, porque no lugar para onde me dirijo há muito, e para todos (Lucas 15:17). Vinde, e tereis a prova.

Obstinado – Mas que coisas são essas que procuras, em troca das quais abandonas tudo o que há no mundo?

Cristão – Procuro uma herança incorruptível, que não pode contaminar-se nem murchar (I Pedro 1:4), reservada com segurança no céu (Hebreus 11:16), para ser dada, no devido tempo, aos que a buscam diligentemente. Assim o declara o meu livro; lede, se quereis, e
convencer-vos da verdade.

Obstinado – Ora, deixa-te lá dessa questão de livro; queres voltar para a tua casa, ou não?

Cristão – Isso nunca; porque já pus a mão no arado. (Luc 9:62).

Obstinado – Nesse caso, vizinho Flexível, deixemo-lo partir, e vamos nós para casa. Há muita gente a quem falta o juízo, em cuja cabeça, encasquetando-se algo, é bastante para que se julgue mais atilado do que os sete sábios da Grécia reunidos.

Flexível – Nada de injúrias. Se o que ele diz é verdade, não pode haver dúvida de que as coisas que busca alcançar são incomparavelmente superiores às que possuímos. Diz-me o coração que ele está muitíssimo certo no que afirma, e eu me sinto inclinado a acompanhá-lo.

Obstinado – Então, enlouqueceste também? Ora, toma o meu conselho, e vem para casa comigo. Sabes lá onde esse doido seria capaz de te levar? Anda daí.

Cristão – Deixa-o falar, amigo Flexível; acompanha-me e terás não só a prova do que já te disse, mas ainda muito mais. Se duvidas da minha palavra, lê este livro; daquele que é seu Autor (Hebreus 9:17-21).

Flexível – Amigo Obstinado, a minha resolução está tomada; vou acompanhar este homem e unir a minha sorte à sua. Mas sabes tu (dirigindo-se a Cristão) qual é o caminho que conduz ao lugar que buscamos?

Cristão – Quem me indicou o caminho foi um homem chamado Evangelista. Segundo o que me disse ele, havemos de encontrar uma porta estreita, lá, mais adiante, e aí nos dirão o caminho que havemos de seguir.

Flexível – Então, marchemos!

E ambos se puseram a caminho. Obstinado voltou sozinho para a cidade, censurando os erros e as fantasias dos dois vizinhos. Estes continuaram a caminhar pela planície afora e conversavam nestes termos:

Cristão – Amigo Flexível, ainda não tive ocasião de me informar da tua saúde. Não imaginas quanta satisfação me causa a tua companhia. Se o pobre Obstinado sentisse, como eu, o poder e os terrores do invisível, e a grandeza das coisas que nos esperam, por certo não se teria apartado de nós tão levianamente.

Flexível – Agora que estamos sós, explica-me o que são essas coisas de que me falas, como havemos de as gozar e para onde é que nos dirigimos.

Cristão – Tenho mais facilidade em compreendê-las com o entendimento do que em expressá-las por palavras. Todavia, se tens grande desejo de saber o que penso a respeito delas, ler-te-ei o meu livro.

Flexível – E tens certeza de que as palavras do livro são verdadeiras?

Cristão – Tenho sim; porque o seu Autor é Aquele que não pode mentir (Tito 1:2).

Flexível – Então, lê-mo.

Cristão – Entraremos na posse dum reino que não terá fim, e seremos dotados de vida eterna, para podermos possuí-lo para sempre (Isaías 65:17; João 10:27-29). Ser-nos-ão dadas coroas de glória, e vestidos tão resplandecentes como o sol no firmamento (II Tim.4:8; Apocalipse 22:5; Mateus 13:43). Não haverá ali pranto nem dor (Isaías 25:8; Apocalipse 7:16-17, e 21:4), porque o Senhor daquele reino limpará todas as nossas lágrimas.

Flexível – Quadro belo e magnífico! E a quem teremos por companheiros?

Cristão – Estaremos com os querubins e serafins (Isaías 6:2; I Tessalonicenses 4:16-17; Apocalipse 5:11), criaturas cujo brilho nos deslumbrará; também encontraremos milhares e milhares que para ali foram antes de nós, todos inocentes, amáveis e santos, que vivem na presença de Deus para sempre. Veremos os anciãos com suas coroas de ouro (Apocalipse 4:4), as santas virgens entoando suaves cânticos ao som das suas harpas de ouro (Apocalipse 14:1-5), homens a quem o mundo esquartejou, outros que foram queimados em autos de fé ou devorados pelas feras, ou lançados nas profundezas dos mares, por amor do príncipe daquele reino; vivendo todos felizes, revestidos da imortalidade (João 12:25; II Coríntios 5:2, 3, 5).

Flexível – A simples descrição arrebata-me de entusiasmo. E havemos de gozar esses bens? Que faremos para conseguir partilhar deles?

Cristão – O Senhor do reino declara neste livro (Isaías 55:1-2; João 4:37; e 7:37; Apocalipse 16:6; 22:17) quais são os requisitos; eles se resumem nestas palavras: “Se verdadeiramente os desejamos, Ele no-los concederá de graça”.

Flexível – Muito bem, amigo. O meu coração exulta de alegria; continuemos o nosso caminho e apressemos o passo.

Cristão – Infelizmente não posso andar tão depressa como desejo, porque este fardo que tenho às costas é pesadíssimo.

Conversavam ambos nestes termos, quando os vi chegar à beira dum lodoso pântano, que havia no meio da planície, onde ambos caíram por não o terem visto, entretidos como iam na conversa. Era o pântano da Desconfiança. Coitados! Atolaram-se no lodo, e Cristão atolava-se cada vez mais por causa do seu pesado fardo. – Onde é que nós estamos metidos? Exclamou Flexível.

– Ignoro, respondeu Cristão.

– Então, replicou Flexível, esta é a felicidade de que tens estado a falar? Se assim começarmos a viagem, não posso agourar-lhe bom fim. Mas eu prometo que, se me vejo livre desta, dispensarei de bom grado a parte que poderia pertencer-me do tal decantado país. E fazendo um pequeno esforço, conseguiu alcançar a margem do pântano que ficava para o lado de sua casa. Logo que se viu fora do perigo, deitou a correr na direção de sua casa, e Cristão não mais tornou a vê-lo.

Entretanto, debatia-se Cristão no meio do lodo, diligenciando por chegar à margem oposta; mas o pesado fardo, que transportava, embaraçava-o sobremaneira e ele teria irremediavelmente perecido, se não tivesse chegado ali, muito a propósito, um sujeito chamado Auxílio, que lhe perguntou o que fazia naquele lodaçal.

Cristão – Senhor, um homem chamado Evangelista ensinou-me esta estrada para eu chegar à porta estreita, dizendo que lá me livrariam da ira vindoura. E, quando vinha caminhando, aqui caí inesperadamente.

Auxílio – Bem. Mas por que não seguiste pelas alpendras, aquelas pedras que ali estão colocadas para se atravessar o pântano com mais facilidade?

Cristão – Foi tal o receio que de mim se apoderou que, sem reparar em coisa alguma, segui pelo caminho mais curto e caí no lodaçal.

Auxílio – Vamos. Dá-me, pois, a tua mão.

Cristão viu os céus abertos. Apoderou-se da mão de Auxílio, saiu daquele terrível lugar, e, uma vez em terreno firme, continuou o seu caminho, conforme o seu libertador lhe havia indicado.

Acerquei-me, então, de Auxílio, e perguntei-lhe: Ora, sendo este caminho direito entre a cidade da Destruição e essa porta, por que não mandam arranjar este lugar com mais decência para comodidade dos pobres caminhantes?

– É impossível, respondeu ele; este é o lodaçal para onde afluem todas as fezes e imundícies dos que se dirigem para a convicção do pecado, por isso se chama o Pântano da Desconfiança. Quando o pecador desperta no conhecimento das suas culpas e do seu estado de perdição, surgem em sua alma dúvidas, temores, apreensões desconsoladoras que se ajuntam e se condensam neste lugar. Eis a razão por que ele é tão esquecido e tão impossível de ser melhorado. Por certo que não foi da vontade de el-rei que ele ficou em tão mau estado (Isaías 35:3-4). Muitos operários têm, por ordem de Sua Majestade, e sob a direção dos seus superintendentes, durante muitos séculos, envidado todos os seus esforços para o melhorarem. É incalculável o número de carro e os milhões de saudáveis lições que para aqui têm sido enviados de todas as partes e domínios de Sua Majestade. Mas, apesar da opinião dos entendidos que asseveram ser estes os melhores materiais para a obra do almejado saneamento moral, ainda não foi possível realizá-lo, nem o será para o futuro. O Pântano existe e continuará a existir! Fez-se quanto se podia fazer. Por ordem do Legislador, foram colocadas no meio do pântano umas pedras fortes e sólidas, por onde se possa passar mais facilmente; mas, quando o lodaçal se agita, o que sempre acontece nas mudanças de tempo, exala miasmas que sufocam os viandantes, e estes, não vendo as pedras, caem no atoleiro. O que lhes vale é que, quando conseguem alcançar a porta, já encontram terreno bom e firme.

Depois vi que Flexível chegava à sua casa e que os seus vizinhos acudiam, em tropel, para o verem. Uns chamavam-no sábio, porque abandonara a tempo a empresa; censuravam-no outros por se haver deixado iludir por Cristão, e alguns chamavam-no de covarde porque, uma vez no caminho, não deveria ter retrocedido pelo fato apenas de lhes haverem levantado umas pequenas dificuldades. Flexível sentiu-se abatido e envergonhado, mas pouco depois, achava-se senhor de si, e, então, todos em coro escarneciam de Cristo, na sua ausência.

E assim sendo, creio que não tornarei a falar mais de Flexível.
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*Continuação da leitura do livro "O Peregrino" para a turma da "Sala de Estudos"

 Continuação... Capítulo 3

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